R.I.P. James Brown (1933-2006)
-----------------------------------------------------------------
2006 #1
OS ELEITOS...
1. BURIAL "BURIAL" Existem personagens misteriosas. Personagens do sub-mundo que preferem as sombras da noite, a escuridão do desconhecido, que preferem movimentos discretos mas incisivos.O ambiente soturno acaba por ser o mais atraente neste universo peculiar e único. Poderá se considerados por muitos como o primeiro e último grande disco dubstep, apesar da quase supremacia de texturas negras 2step. É certo que o dubstep ganhou este ano verdadeira visibilidade graças a este disco, mas também certo que o seu autor afastou-se da matriz elementar do género e gerou um universo próprio. É perturbador, negro e dos raros casos em que a música está em sintonia com o presente e simultaneamente consciente do futuro. É o verdadeiro produto fruto dos nossos tempos, onde os receios, medos e incertezas – talvez resultantes do 11 de Setembro – se identificam e se sentem. Burial um dos misteriosos arquitectos do amanhã e a sua música um espelho que reflecte a pouca luz das nossas cidades. Os baixos são quase subsónicos, os ritmos residuais e arquitectados parecem esqueletos afilados e proporcionados. As harmonias dub alienígenas pintam um manto negro de mistério onde nos deixamos envolver com naturalidade. Burial é, sem dúvidas, o disco do ano!!
2. REKID "MADE IN MENORCA"
É de difícil catalogação toda esta música mas a house parece ser um dos géneros que mais revela a sua personalidade. O fantasma de Theo Parrish também paira por aqui, mas mesmo assim não é possível encontrar aquela alma característica do músico de Detroit. As cadências lentas caracterizam os ritmos, as melodias evoluem com os ecos do dub, o electro e o funk também marcam ocasionalmente presença...O caldeirão sonoro poderá não vir a ser consensual, por um lado por ser um resultado feito de padrões estranhos ou fragmentos de muita coisa que simultaneamente parecem não ser nada de concreto. Por outro, o que uns poderão achar estranho ou confuso, outros encontrão nesta substância dissoluta, corrupta e sombria a fonte de jubilo que faltava neste ano de 2006. Mais um grande disco! Essencial!
3. DOUBLE D FORCE "ENFORCE THE FUNK"
Provavelmente condenado a ser um dos discos portugueses do ano. Enforce The Funk força a ideia aventureira de quem procura no electro-funk o ideal que concretize a esperança no hip-hop nacional. Que a aventura compense e possa abrir mais portas a quem tem ideias ambiciosas. Poderemos sempre encarar este trabalho da dupla D-Mars e D-Fine como um dos melhores exemplos em Portugal de uma visão estética muito definida, um exercício de estilo que encontra no electro-funk de 80 a fonte de inspiração e nos meios de produção actuais uma concretização de um velho sonho: uma linguagem própria, madura e com substancia natural que permita colocar o nosso som ao nível do que de melhor se vai produzindo por esse mundo fora. E com esforço e sabedoria tudo torna-se possível...
4. BURAKA SOM SISTEMA "FROM BURAKA TO THE WORLD"
O confronto directo das cadências vigorosas do kuduro e do techno estimulam a esfera do pensamento humano e incentivam os corpos ávidos por prazer físico. A catalogação não é fácil, mas também acaba por não ser o mais importante, porque a frescura experimental desta música espicaça o íntimo.Buraka Som Sistema é um projecto onde a tecnologia e a tradição não encontram estorvo, antes pelo contrario, deparam-se com frontalidade, extraindo um do outro os elementos necessários que permitam a erecção de uma personalidade com sentido de existência singular. A mais-valia acaba por ser o encontro com um nova essência, uma nova realidade estética nascida em terras lusitanas. Algo invulgar nos dias que correm...«From Buraka To The World» é a prova cabal que nos permite dizer com segurança que há vida própria nas margens da industria musical portuguesa.
5. KODE9 + THE SPACEAPE "MEMORIES OF THE FUTURE" Depois da experiência de Burial, Kode 9 & The Spaceape confirmam a tendência para a exploração sonora obscura em torno das linguagens do dubstep. Serão memórias de um futuro apocalíptico ainda por viver? The Spaceape, entre a sanidade e a loucura, parece enuncia-las num tom assombroso enquanto que a música de Kode 9 reforça a ideia enigmática de poderemos vir a ser possuídos por um vírus alienígena. Qual dos dois estará perdido nos mais belos sonhos da paranóia? Provavelmente os dois. Porque a delírio é colectivo e capaz de gerar as ideias mais improváveis, algumas delas expostas com eloquência por entre o negrume dos sons e palavras de The Memories of The Future.
6. JUNIOR BOYS "SO THIS IS GOODBYE"
É a prova evidente que é possível viver sem os revivalismos ortodoxos de 80, de viver vida própria sem ser refém de maneirismos de outros tempos. Esta música subsiste com referências electro-pop indiscutíveis como OMD, Soft Cell, The Human League ou Depeche Mode, mas a necessidade dos Junior Boys em abrir novas portas e compreender o presente e o mundo que os rodeia, revela alguma sabedoria autodidacta na disposição cerimoniosa dos sons, na forma como gerem o tempo e o espaço e na capacidade de escrever e exprimir os sentimentos. E essa ideia com que ficamos depois de algumas escutas, reflecte uma qualidade na estrutura de pensamento – no que diz respeito à inteligência da composição – que viabiliza toda a operação para além da beleza imediata de todos os temas. E quando me refiro a beleza ponho de parte a ideia de leviandade a que estamos habituados a ver associado o substantivo. Sem espaço para excessos, aqui tudo é belo, sério e melancolicamente doce.
7. NINO MOSCHELLA "THE FIX"
Stevie Wonder, Billy Preston e os Sly and The Family Stone poderão ser os primeiros nomes a virem à tona da memória de quem toma contacto pela primeira vez com este disco e concluir que, sem grandes margens para dúvidas, que estes nomes são as principais inspirações para o jovem músico de 29 anos Nino Moschella.O ponto de partida é o funk, mas esta música é bem mais abrangente não deixando por mãos alheias a tarefa de explorar as sensações que só a soul e o blues poderão proporcionar. A amalgama é estimulante e a fricção entre uma orgânica acústica e um sincretismo electrónico recorda que a experiência de Multiply de Lidell à um ano atrás não foi um caso isolado e que abriu-se uma nova frente criativa. Apesar da grande maioria dos registos serem lo-fi, ou seja somente o essencial tem espaço para actuar, a irreverencia sobressai quando a matéria clássica é pervertida, uma atitude especulatória que ressalta e sobressai num momento em que todos procuram recriar uma determinada época de perfeição artística.
8. VISIONEERS "DIRTY OLD HIP-HOP" Marc Mac, cara-metade do projecto 4Hero, sabe o que faz. É um produtor com conhecimentos suficientes para rodear-se, não só dos instrumentos certos, como dos músicos mais competentes - talvez os mais profissionais para darem forma ao que a sua mente arquitecta - e usar a sua técnica e capacidade única de erguer a música certa no tempo certo, para construir uma série de temas que em nada devem à ingenuidade ou à ignorância.A música não soa conceptual, apesar de o ser. É orgânica, com vida, espírito empreendedor e não se fica por um hip-hop sujo e velho embrulhado em novidades passageiras… Não! Soa convincentemente verosímil, verdadeira no espírito que procura evocar, séria na forma como respeita as tradições tanto do jazz como do hip-hop. Se é sujo ou velho, visionário ou não, ainda bem que seja de tudo um pouco porque da contradição extrai-se uma certeza: ainda há muito a aprender com o passado.
9. SPANKY WILSON & QUANTIC SOUL ORCHESTRA "I'AM THANKFUL"
Em I’am Thankful, Spanky entrega-se de corpo e alma a toda a música e expõe uma voz segura e de tom portentoso – e que voz esta senhora ainda possui! – enquanto Will recorre a todos os seus conhecimentos do velho filão soul, jazz e funk, tentando assegurar-se que todos os momentos são arrebatadoramente eficazes. Este álbum inclui na sua matriz todos os elementos que, jogados e integrados no tempo e espaço certos, permite concluir que toda a operação é um sucesso encantador onde tradição colide com modernidade. Não se estranhe por isso que Will e companhia ainda estejam na linha da frente de uma linguagem funk de inteligência rara. Muitos poderão achar que a fórmula, além de datada, estará esgotada mas depois de ouvir I’am Thankful é pouco provável que todo o dinamismo live de Spanky e do conjunto liderado por Will Holland, não seja alvo de aplausos, mesmo dos mais cépticos, porque além de um encontro histórico entre duas gerações é mais um marco – como foi Sharon Jones & The Dap Kings e Lefties Soul Connection há pouco tempo – na revitalização estética do género. Já só falta James Brown juntar-se aos Breakestra para o quadro estar completo.
10. TWINSET "LIFESTYLE"
É precisamente de um estilo de vida de que se trata, tanto na metodologia da elaboração sonora, na recolha e inspiração de referências e na maneira como se apresentam. Distinguem-se essencialmente na maneira como olham a música, as tipologias, sincronizando um ideal jazz que, apesar de clássico, consegue trazer até si a pureza do swing, o calor da bossa e a atitude irreverente do funk num poderoso, apesar de calmo e elegante, manifesto de jazz moderno pensado para o século 21. E é talvez isso torna este álbum tão merecedor da nossa atenção. Não que traga uma mensagem nova ou seja um facto com envergadura de cortar a respiração, mas é precisamente na possibilidade de se poder respirar simplicidade enquanto se ouve a dinâmica e o exercício conceptual de três músicos na forma de encarar o presente, ignorando estereótipos, a proporcionarem ao ouvinte, o prazer de encontrar uma mais-valia estética...
11. BUGZ IN THE ATTIC "BACK IN THE DOGHOUSE"
«Back In The Doghouse» é um verdadeiro exemplo da experiência profissional e das capacidades de produção dos seus autores. Uma paródia onde a descontracção, o ambiente de confiança entre os elementos e a escrita criativa tornam-se a mais valias que permitem que toda a operação não se perca em futilidades conceptuais ou em facilidades linguísticas.Coerência e consistência acabam por assegurar a sobrevivência de uma obra que já teve melhores tempos para ver a luz do dia. Não estará deslocado do tempo por completo, mas o terreno fértil do broken beat começou a revelar algumas dificuldades e limitações. «Back In The Doghouse» não revitaliza o género, mas essa também não deverá ter sido a prioridade destes senhores, que essencialmente criaram pelo prazer que têm em estar no estúdio e pela honra de explorarem --á sua maneira-- o rico filão que é a música negra.
12. LEFTIES SOUL CONNECTION "HUTSPOT" "Hutspot" Poderá não ser na essência um trabalho conceptual, com principio meio e fim, poderá perder um pouco por ser uma antologia, e paradoxalmente ser uma obra maior sem ser a obra-prima do funk actual, fundamentalmente deixa a porta aberta para quem queira continuar a explorar as dinâmicas que o género exige, acabando, acidentalmente, por ser mais uma lição de criatividade artística, num tempo em que as amarras da pop dominam a força da liberdade conceptual e artistica.
13. GNARLS BARKLEY “ST. ELSEWHERE”
St Elsewhere é um produto do seu tempo, concebido por quem está atento aos tempos da tecnologia. Desperta atenções pela capacidade de captar ideias pequenas e inseguras e transforma-las em substâncias robustas, fundir géneros uns com os outros a um nível quase sub-atomico e por fim revelar alma evitando a exposição excessiva das suas personagens.Há quem possa dizer que se trata da pop do futuro, eu não iria tão longe. Ainda não será o facto estético do ano, apesar de em alguns casos andar bem perto. Poderá é ser uma das agradáveis surpresas de 2006 pela forma como decidiu captar o seu público…
14. FUJIYA + MIYAGI "TRANSPARANT THINGS"
A eloquência é um trunfo que acaba por triunfar de forma arrebatadora. Por vezes parece música feita por adolescentes, com algum toque de ingenuidade e pureza, jovens que descobrem agora uma forma de homenagear os seus heróis. Na verdade, e repito, os rapazes sabem o que fazem. David Best poderá não ser o melhor vocalista do mundo, mas os seus sussurros sóbrios, atribuem a toda a música uma ideia indubitávelmente firme e confiante. Transparentes e seguros de si, os Fujiya + Miyagi erguem o monumento pop do ano. E digo sem receio de utilizar o rótulo mais indesejado deste milénio.
15. HERBERT "SCALE"
Os diários sonoros primorosamente produzidos com a habitual perícia manipuladora mantéem-se, recordando-se os melhores momentos de Dr Rockit. A electrónica torcida e retorcida, trazendo à memória as experiências de Wishmoutain, concretiza-se com naturalidade e com a habilidade típica. As melodias acabam por ser características de quem procura à anos, em conjunto com Dani Siciliano, o ideal pop e a inventividade melódica como estímulo para o trabalho quotidiano. O ideal jazz volta a ser revisto à luz de um velho sonho de Big Band.Scale vive muito do conceptualismo em busca do prazer carnal e acaba por não ser uma ruptura com o passado, mas sim um passo em que toda a matéria periférica sucumbe para um centro. Todo o trabalho de anos une-se num único ponto, dando-se assim um nó... Não há falta de inventividade ou de inspiração, apenas a vontade de colocar no centro da acção todas as ideias que motivaram Herbert nos últimos anos, mesmo que para isso tenha de soar mais pop que o habitual.
16. RADIO CITIZEN “BERLIN SERENGETI”
Será caso para elogiar a capacidade de empreendimento e a força aplicada na forma de tratamento de toda a matéria-prima. O tempo investido nos pormenores é evidente, apesar da sonoridade propositadamente suja e rude sugerir o contrárioO nu-jazz já contou com melhores dias. Mas é evidente que quando o regresso ás raízes devolve a clarividência perdida, o poeta volta a compor rimas com a fluência de outros tempos. Chama-se também de inspiração. E não será outra a palavra que melhor descreve Berlin Serengeti. Bajka é extraordinária, e como se fosse necessário mais, devolve com dedicação o esforço de Niko Schabel, que em permanente convulsão consegue construir um admirável conjunto de temas impecavelmente conscientes dos tempos que vivemos. Um raro momento de iluminação criativa e um dos raros casos onde, uma vez mais, o passado se envolve com o futuro numa promiscuidade invejável.
17. SAM THE KID "PRATICA(MENTE)" Eis a confirmação: Sam The Kid é agora o grande senhor do hip-hop tuga. Pratica(mente) revela uma consistência invulgar num género que em Portugal teimava em não revelar todo o potencial. Consciente da sua verdade e da sua poesia urbana, Samuel expõem sem constrangimentos a sabedoria de quem cresceu na rua e nela aprendeu a destituir o bem do mal. Sem ambiguidades e sem receio de experimentar, o passo seguinte foi dado, elevando se agora a fasquia da qualidade para os próximos intervenientes. A brincadeira casual terminou, agora devem entrar os profissionais. A produção nacional não podia ter terminado de melhor forma.
18. ROOT 70 “HEAPS DUB”
Entre o primeiro e último tema, vislumbramos pelo meio a selecção cuidada de algumas produções incluídas em Can´t Cool, Midnight Sound ou Inner Space/ Outer Space que, perante uma nova estratégia de pensamento, ganham nova vida, nova substância e nova envergadura onírica. Heaps Dub é uma viagem séria, profundamente comprometida com os originais, mas distante o suficiente para permitir novas abordagens modernistas e várias visões alternativas para um reportório conhecido pela qualidade do songwriting. No fundo, mais um momento iluminado pela sabedoria e pelo gosto da aventura.
19. SPANK ROCK "YOYOYOYOYO"
A promiscuidade começa antes de mais por ser uma arma, um meio de ideias soltas e díspares. Poderá dizer-se que da confusão mais cedo ou mais tarde nasce a ordem. E se tivermos a imaginação como caldeirão onde tudo turbilha de um lado para o outro, acabará sempre por ser na mente humana que tudo começará a fazer sentido... mais cedo ou mais tarde. De hip-hop se trata, sem dúvida. YoYoYoYoYo é um desses objectos nascidos de ideias díscolas, da confusão e por fim da fusão de tudo o que inicialmente podia não fazer muito nexo. Arriscar torna-se imperativo desde que haja iniciativa e coragem para concretizar o que outrora se sonhou. Os Spank Rock são um dos nomes essenciais do panorama hip-hop actual e um dos nomes a reter do ano de 2006.
20. SIR SCRATCH “CINEMA: ENTRE O CORAÇÃO E O REALISMO”
Mais um exemplo de boa produção nacional. Raramente o hip-hop tuga consegue sair de um certo gueto em que os seus protagonistas entraram de forma não intencional. É certo que o boom deu-se e que finalmente o hip-hop produzido em terras lusitanas começa a ser reconhecido e escutado sem qualquer preconceito ou desprezo e que lentamente surge uma linguagem própria, mas a muita produção raramente tem trazido a qualidade que começa a fazer alguma falta nesta fase. A evidente falta de investimento na produção e a excessiva aposta nas rimas tem provocado um desequilíbrio que acaba no entediamento do ouvinte. Sir Scratch parece, logo no primeiro tombo, encontrar o equilíbrio certo. A riqueza da palavra, das rimas, da mensagem acentam de forma ideal numa estrutura rítmica vigorosa que acompanha fielmente uma melodia que evita o loop excessivo. Dos samplers extrai-se a riqueza que vai dando sentido a toda a operação: indagar a realidade com o coração nas mãos.
2006 #2
SE A MEMÓRIA NÃO ME FALHA...Dubstep: Ano de consagração de um dos mais interessantes fenómenos musicais nascidos nos underground’s de Londres. Não é a cura, mas sim um exemplo de inventividade num meio com pouca vontade de criar. Além de Burial e Kode 9, Benga, Skream, Loefah, Digital Mystik e a colectânea The Roots of Dubstep também marcam o ano.
A resposta ineficiente do estado no combate á corrupção. Ineficiente por incompetência? Ineficiente por realmente não ser uma verdadeira prioridade? Um estado sem moral corrompe um país. E assim não vamos lá.
Ubiquity Records é provavelmente uma das editoras do ano. Revelou uma vez mais conhecimentos de mercado e ecletismo na escolha de músicos e produtores para o seu catálogo: Nomo, Nino Moschella, Radio Citizen ou Owusu & Hannibal. Exemplos de revelações em 2006.
Penalização da pirataria musical. John Kennedy da Federação Internacional da Industria Fonográfica e a SPA chegaram e decretaram o disparate: alertaram os pilhantes que estão sujeitos a receber na caixa de correio um convite para pagar uma multa por desrespeito aos direitos de autor. Talvez a solução passe primeiro por criar-se legislação própria antes de gastar-se dinheiro em selos.
A nova música urbana portuguesa começa a dar passos seguros para um novo nível: a segura experimentação de novas linguagens. Buraka Som Sistema e Double D Force são prova disso. O hip hop tuga conheceu finalmente dois excelentes discos: Cinema... de Sir Scratch e Pratica(mente) de Sam The Kid. Lentamente chegamos lá.
A Flur voltou a revelar-se como uma das melhores lojas de discos em Portugal. O atendimento é simpático e competente. O leque variado de cd´s e vinil permite uma tarde bem passada enquanto desfrutamos das últimas novidades ou recuperamos raridades perdidas.
O lento desaparecimento da imprensa musical profissional. Com excepção dos pequenos suplementos semanais e de bons sites ou blogs, a imprensa musical praticamente desapareceu. O fim do Blitz em jornal semanal e o início de uma ineficiente revista mensal é mais um infeliz episódio de como a qualidade começa a escassear.
Big Apple Rappin: Compilações assim têm de ser obviamente elogiadas, tanto pelo conteúdo propriamente dito, tanto pelo profissionalismo de quem, com um excelente trabalho de investigação, nos proporcionou um documento que agora retrata um determinado período que mudou inevitavelmente o rumo da música popular deste planeta. Uma grande salva para o bom gosto da Soul Jazz Records.
Televisão. O ano Floribella num país de morangos enchafurdados só revela que temos, infelizmente, mais perfil para nação de terceiro mundo do que para país evoluído. Programas sobre música na TV, para variar, são praticamente inexistentes.
Daft Punk no Sudoeste. Na memória de muitos ainda está bem presente o magnífico espectáculo multimédia da dupla francesa. Poderão ter passado o tempo a jogar Playstation, mas o espectáculo foi intenso e majestoso.
SKREAMSKREAM!
E uma vez mais o dubstep. Da obscuridade para a ribalta, o género tem-se revelado ao mundo como uma das mais interessantes tipologias a imergirem dos undergrounds londrinos. Figuras como Benga, Kode 9, Digital Mystik, Burial ou Skream passaram para a linha da frente, e como principais inovadores estéticos do dubstep, revelaram-se produtores hábeis capazes produzir algumas das mais estimulantes bizarrias sonoras contemporâneas. Certo que os primeiros a atingirem o estatuto de porta-estandarte – Burial e Kode 9 – foram também os primeiros a exporem um dubstep personalizado, com carácter suficiente para atraírem algumas franjas de mercado que olhava com alguma desconfiança, senão mesmo com algum desprezo, para uma série de putos de bairros suburbanos de Londres que brincavam ora com um 404 bassliner ou uma Playstation.
Um desses putos era e é Olli Jones, conhecido agora mundialmente por Skream, que aos 15 anos abandona a escola católica que frequentava em Croydon e decide vender discos na Big Apple Record Shop. A vontade de viver da música já lá estava e, um pouco contra a vontade dos pais decide enveredar pela produção. Depois de conhecer Benga decide levar a tarefa mais a sério e começa compulsivamente a experimentar sons no seu computador. O fascínio por uma sonoridade garage/ 2step obscura, minimal e hipnótica, onde o baixo, a transmitir em baixas frequências, entorpece mais o corpo do que propriamente o tímpano, leva Skream a insistir na fórmula que mais tarde viria a ser a base de “Midnight Request Line”, um dos temas mais influentes na divulgação dubstep ao mundo.
Depois da experimentação e de investidas algo irregulares expostas nos dois volumes Skreamizm é agora a vez da confirmação. E a única forma possível de elaborar trabalho, reunir o pertinente e posteriormente expô-lo como obra conceptual, como obra possuidora de coluna vertebral é com a edição de um trabalho de longa duração. Skream teve naturalmente de esperar pela conjuntura certa para o fazer. Mais, tinha de ter a certeza do que trazia ao mundo e de que forma. Skream! É o álbum de estreia e é também possivelmente uma direcção que poucos teriam dúvidas que fosse diferente.
Ao contrário de Burial e Kode 9, Skream investe tempo no lado mais radioso do dubstep. Em vez de explorar o lado negro, o vórtice para onde converge toda luz e energia, o jovem Olli prefere expor a força do ritmo, a prepotência do sub-baixo e as melodias inspiradas no dub ou no ragga. E apesar de na primeira escuta tomarmos consciência que por aqui não existe o nervo conceptual de Memories of The Future ou a visão de um Burial, há no entanto um esforço de captar as atenções exteriores para o dubstep através da simpatia, através da descontracção daqueles que apenas pretendem uma noite variada, descongestionada, sem grandes pressões intelectuais. Simplesmente mover o corpo e a mente sem necessariamente ficar possuído pela repetitividade brutal e minimal que por exemplo caracteriza o álbum de estreia de Benga “Newstep” – editado este ano. Por aqui não haverá grandes dúvidas sobre o que deverá ser o futuro do dubstep. E a visão de Skream, apesar de curta, abre porta a outras experiências essenciais para a sobrevivência do género e, claro, do próprio Skream. Não haverá grandes surpresas neste disco, muito menos labirintos enigmáticos ou ideias fortes que tombem os desprevenidos. Mas há alguma espontaneidade inocente de quem se esforçou para trazer á luz do dia um conjunto de temas desenhados para proporcionar prazer.
PUBLICADO ORIGINALMNTE NO BODYSPACE
SPANKY WILSON & THE QUANTIC SOUL ORCHESTRA
I'M THANKFUL
Porque na história da música em geral ainda rezam alguns feitos de outrora, haverá poucas figuras históricas hoje em dia que necessitarão de grandes introduções formais. Spanky Wilson ainda é uma lenda viva, ainda inspira novas gerações e ainda é capaz de contribuir para o aperfeiçoamento de alguma música produzida actualmente. Ela colaborou com alguns dos mais importantes nomes ligados à soul, jazz e blues dos anos 60 e 70 e a sua presença ao lado de digníssimos como Marvin Gaye, Sammy Davis Jr., Lalo Schifrin, Jimmy Smith, The Duke Ellington Orchestra, Pretty Purdie ou Willie Bobo não passaram despercebidos aos anais da história e, mesmo vivendo hoje em dia uma vida recatada em Paris e admitindo que o seu tempo já lá vai, ainda entusiasma uma série de jovens músicos, produtores e DJ que, fartos da programação do sampler, passaram a olhar para os clássicos de outra forma e a erguer a sua música com outra dinâmica. É o caso evidente do Sr. Will 'Quantic' Holland que não esconde – nem nunca escondeu – as suas referências, ou heróis de adolescente, nomeadamente Spanky Wilson. Não se estranhe por isso que da boca de Spanky tenha saído recentemente um comentário a revelar algum espanto: “I was shocked by this new found interest from new young folks in me”.
O sentimento de admiração de Will levou-o em 2003 a convidar a diva a colaborar em “Dont Joke With a Hungry Man” incluído em Mishaps Happening. Com a certeza que o curto contacto foi um sucesso, esse mesmo sentimento impeliu-o a convidar a senhora uma vez mais. Na mente de Holland estava num trabalho de longa duração. Depois de um momento menos feliz este ano – coma a edição de An Announcement To Answer – Quantic, acompanhado agora pela sua Quantic Soul Orchestra, volta a revelar o talento que tem para a composição, mas especialmente para a forma engenhosa como consegue captar o espírito de outros tempos e enquadrar tudo numa matriz contemporânea. Com o melhor de dois mundos acaba por edificar o seu próprio universo sonoro onde diversas tipologias fazem sentido num único momento. Do choque de gerações é possível extrair-se a mais-valia que acaba por enriquecer não só a música mas a arte em geral. E Quantic sabe disso, daí que a sua habilidade aliada à escrita criativa tenha sido já amplamente reconhecida e hoje admirada por muitos.
Em I’am Thankful, Spanky entrega-se de corpo e alma a toda a música e expõe uma voz segura e de tom portentoso – e que voz esta senhora ainda possui! – enquanto Will recorre a todos os seus conhecimentos do velho filão soul, jazz e funk, tentando assegurar-se que todos os momentos são arrebatadoramente eficazes. Este álbum inclui na sua matriz todos os elementos que, jogados e integrados no tempo e espaço certos, permite concluir que toda a operação é um sucesso encantador onde tradição colide com modernidade. Não se estranhe por isso que Will e companhia ainda estejam na linha da frente de uma linguagem funk de inteligência rara. Muitos poderão achar que a fórmula, além de datada, estará esgotada mas depois de ouvir I’am Thankful é pouco provável que todo o dinamismo live de Spanky e do conjunto liderado por Will Holland, não seja alvo de aplausos, mesmo dos mais cépticos, porque além de um encontro histórico entre duas gerações é mais um marco – como foi Sharon Jones & The Dap Kings e Lefties Soul Connection há pouco tempo – na revitalização estética do género. Já só falta James Brown juntar-se aos Breakestra para o quadro estar completo.
DUBSTEPSe estivéssemos bem no presente será que era necessesario ter memorias do futuro?
A Hyperdub e o dubstep acabam por marcar o ano 2006. O que começou por ser um movimento underground como tantos outros nascidos nos bairros suburbanos de Londres transformou-se num fenómeno envolto tanto em mistério como em curiosidade. Com a edição do enigmático e soturno Burial, a atenção e as expectativas em torno do dubstep cresceram exponencialmente – não se estranhe por isso que o álbum de estreia de Kode 9 fosse um dos discos mais aguardados do ano. É curioso que de um género como o dubstep, pelo qual poucos davam um chavo, surjam dois dos mais evidentes marcos de inventividade do ano. Dois estímulos negros – e por vezes feios – que nos inquietam a alma e simultaneamente proporcionam um raro prazer de descoberta. Dois futuros clássicos que para já terão de ser classificados como quase obra de arte
Apesar do movimento já contar com quatro ou cinco anos, e ter nascido de um evidente cruzamento entre reminiscências 2step, dub, techno e grime, só em 2005 foi considerado efectivamente um género com potencial suficiente para permitir a impressão de uma marca de autor na matriz e partir para patamares mais ambiciosos que os significativos volumes de vinis de 12” que vão invadindo as lojas especializadas – Hatcha, Youngsta, Skream ou Digital Mystik - ou as meras antologias temáticas – Skreamizm, The Roots of Dubstep ou Dubstep All Stars – que por vezes entram numa espiral repetitiva sem interesse.
Com a edição de Memories Of The Future começamo-nos a aperceber um traço em comum não só com os registos da Hyperdub mas em geral no dubstep: uma linguagem que assenta nos pressupostos inscritos nos títulos dos temas e que desenvolvem uma ideia de tensão urbana, surrealista e virtual. Ideias capazes de redireccionar os sentimentos negros da alma humana para um estado ainda mais sinuoso e simultaneamente rogarem por um mundo em declínio enquanto que a sugestão de um futuro já vivido nos assalta a continuidade temporal.
Uma vez mais o universo descrito por Philip K. Dick em "Do Androids Dream of Electric Sheep?" volta a ser o cenário que nos assola a memória. Burial foi dos primeiros a sugerir espaço próprio e a visionar essa memória de forma eficaz, introduzindo novas nuances ao género. Lentamente novos elementos são acrescentados á matriz. Evoluções que desafiam os primeiros traços genéticos para além da estrutura que as Dubstep All Stars nos habituaram e que só mesmo um trabalho individual de longa duração pode proporcionar de forma evidente. Até ao momento poucos se têm-se aventurado para além do formato de 12” - Vex'D, Burial, Boxcutter, Skream e Kode 9 + The Sapceape - mas os poucos que o fizeram evidenciaram estudo, direcção, sensibilidade suficiente para erguer um conjunto de peças capazes de interagir umas com as outras. Das editoras ligadas ao dubstep, apenas a Hyperdub, comandada por Kode 9, têm sido capaz de complementar a lacuna e implementar uma sonoridade onde o objectivo primordial é mistificar o género e mais, atribuir-lhe carácter suficiente para que as redundâncias comecem a soar a um sincretismo eloquente onde presente e futuro assemelham-se ao consciente e inconsciente, ao real e sobrenatural.
Mas será que se trata de uma miscelânea de tensão urbana actual reflectida no dia seguinte? A especulação levada a um extremo onde torna-se difícil a ressurreição dos paradigmas da música actual? No caso da Hyperdub diríamos que sim. Apesar da verdade aparentemente absoluta das mensagens difundias pela editora, e enunciadas num tom fantasmagórico, existem dúvidas naturais sobre, não só os objectos finais, mas o que acaba por sugerir a editora com os elementos erráticos que lança da sua base para o resto da música actual. Burial fá-lo com uma evidência surpreendente e Kode 9 acompanha. Estaremos então perante a desconstrução da tradição e a consequente erecção de novos paradigmas ou devemos encarar o trabalho da Hyperdub como pontuais exercícios criativos em torno do próprio dubstep? Questão que o futuro nos responderá com a brevidade que entender ser necessária para classificar uma obra como intemporal ou inconsequente.
Se encaramos a certeza da novidade inscrita nas linguagens do próprio género teremos a satisfação de descobrir um mundo novo, ignorando o impacto da música na cultura urbana actual, mas se o efeito e casualidade forem considerados como indiscutíveis e resultado de uma investigação extensa – como parece ser o caso – ao alongo dos últimos anos, teremos a mesma satisfação, mais a convicção que estaremos perante obras que sobreviverão para alem do sufoco criativo do dubstep.
Para já debrucemo-nos com pouco mais de cuidado sobre a matéria em mãos e retirar algumas conclusões para o imediato. Será inegável que as expectativas foram superadas no que diz respeito aos álbuns de estreia da Hyperbub. Bem como prazer na actual música de dança renovado e, mesmo deixando para depois a resposta à questão sugerida por muitos – sobre o valor da pedrada no charco que ambos os discos representam – o certo é que ambos os discos são factos estéticos nascidos no mesmo laboratório mas com fórmulas idealizadas por gente diferente.
BURIAL
BURIAL
Existem personagens misteriosas. Personagens do sub-mundo que preferem as sombras da noite, a escuridão do desconhecido, que preferem movimentos discretos mas incisivos. Directos, criativos, enigmáticos. Burial perfere explorar o sentimento melancólico de uma cidade embebida na inexistência de esperança, num lado negro da alma sem resistência para vírus maléficos resultantes do stress. Mais empenhado na arquitectura 2step idealizada no início da década, a misteriosa personagem canaliza as poucas imagens de beleza da noite para um vórtice complexo, hipnótico e virtual. Sobrevoa as plantas da canalização do conhecimento urbano com a mesma facilidade que um bimotor sobrevoa uma cidade sem vento. Esforçando-se na mistificação do seu som, sensibiliza-nos para a possibilidade de um iminente apocalipse. Tudo o resto é singular, único, desusado. Os baixos são quase subsónicos, os ritmos residuais e arquitectados parecem esqueletos afilados e proporcionados. As harmonias dub alienígenas pintam um manto negro de mistério onde nos deixamos envolver com naturalidade. Burial é provavelmente o disco do ano. E isso é trabalho de génio louco.
KODE 9 + THE SPACEAPE
MEMORIES OF THE FUTURE
Em Memories of the Future, Kode 9 e Spaceape, num escape iminente para uma dimensão alternativa, sentem uma necessidade, ao contrário de Burial, da viagem para além do interior, uma viagem no continuum temporal. O relato sombrio cataliza a cápsula, atirando-a entre o presente e o futuro. A fricção dos baixos subsónicos sugere uma viagem atribulada. O dub narcótico define o tom misterioso. As cadências, num tom dubstep mais evidente, fazem a indulgência enigmática e determinam a gestão do espaço, da palavra e da melodia. Kode 9 regula-nos os sentidos para estarmos receptivos ao negrume frio e alienígena de quem já se apercebeu que o mundo caminha para o abismo. Podíamos estar perante mais uma banda sonora de qualquer filme sci-fi pessimista e que anuncia o lento fim de tudo o que é vivo, restando máquinas possuídas por rancor e que ficcionam nas entrelinhas das dúvidas e medos tudo o que gostariamos de bom para o porvir. Com o medonho sussurrar de palavras de Spaceape, e do tom catastrófico como anuncia as memórias do futuro, o sopro desconfiado acaba por nos acalentar alma como se, em pleno transe, aceitássemos o aftermath. Talvez o talento inscrito nestas linhas esteja aí: na capacidade de interpretar o futuro e dele extrair sabedoria.
KOOP
KOOP ISLANDS
Será possível estar em dois sítios ao mesmo tempo? As leis da física diriam que não, mas se a nossa imaginação se mantiver fiel ao princípio the sky is the limit, de certo que não haverá qualquer limite para fantasia. O importante será mesmo ignorar as fronteiras delimitadoras entre a realidade e a ficção e deixarmo-nos envolver com os sonhos. Se for possível encontrar a banda sonora que acompanhe um retrato tanto melhor. A música sempre enriqueceu as imagens…
Volvidos cinco anos sobre a edição de 'Waltz for Koop', o duo escandinavo regressa com mais um inocente manifesto fantasioso onde é mesmo possível estar em dois locais diferentes sem sair do mesmo lugar. Uma vez mais isso torna se possível muito graças a extraordinária capacidade de Oscar Simonsson and Magnus Zingmark em compor música que desafiam as leis da física convencional. Ainda bem que alguém o faz, caso contrario teríamos de ficar encalhados para o resto da eternidade num universo excessivamente formatado, quadrado e cinzento e onde todos falam a mesma linguagem.
Koop Islands é um convite dos Koop para embarcarmos numa curta viagem de meia hora com destino à ilha onde tudo se passa de forma quase surrealista. Onde fantasiar acaba por ser um acto praticamente incontrolável. Existe uma estranha onda de calor com origem nas terras frias da Escandinávia que nos aquece o coração numa altura em que o Verão nos abandonou por mais uma ano. Tudo resulta da extraordinária capacidade de compor canções, onde um sincretismo pragmático se transforma numa ferramenta essencial para a transformação de diversas matérias como o swing ao velho estilo big band anos 30, a pop dos anos 60 ou a soul dos anos 70 numa única massa sonora moderna possuidora de uma eloquência formal que literalmente nos deixa siderado.
Será impossível resistir aos encantos de um 'Come To Me' porque não só nos deparamos com a voz irresistível e inocente de Yukimi Nagano, como nos sentimos embalados por um swing hipnótico que nos arrasta para um vórtice temporal onde nos vemos sentados num velho club jazz caratristico da Nova Iorque dos anos 30 instalado numa das praias das Caraíbas. Ou de 'Koop Island Blues' que nos mergulha nas águas quentes do mediterrâneo enquanto no horizonte imaginamos uma cena de amor entre um jovem siciliano e uma qualquer Bond-Girl dos anos 60.
Koop Island mantêm as características de todos os álbuns anteriores dos Koop. Podemos mesmo admitir que não existe diferenças de relevo entre os encantos de Waltz for Koop e este terceiro álbum, mas a forma como nos capta uma vez o espírito, nos conquista a atenção ou revela um natural enlevo místico, deixa nos imbuidos numa luxúria voluptuosidade. Koop Island fará com que ignoremos os princípios elementares de evolução artística que separam os álbuns uns dos outros da mesma maneira como ignoramos as leis da física num universo fantástico, surreal, onde tempo e espaço correm ao sabor dos ventos e marés. Certamente as mesmas brisas e correntes que assolam uma ilha imaginaria algures nos mares do norte. Às vezes o melhor é mesmo deixarmo-nos envolver com os sonhos e esquecermos a realidade…
LANGOTHGROUNDING
Viena ainda parece estar a recupar da crise. A falta de objectividade e alguma desorientação estética, aliada a um refrear criativo das principais mentes, atiraram a música austríaca dos últimos tempos para um marasmo onde nem o sol se põe nem a alvorada soa. Os Tosca provaram que, depois de «Suzuki» (2001), não acrescentaram nenhuma mais-valia ao reportório. Os Madrid Del Los Austrias, que em busca de mais amor atormentaram-nos a alma em 2005, decidiram em comum acordo a união de facto com Dorfmeister e mais uma série de outras personagens que lançaram escavadelas em busca de mais minhocas, provaram definitivamente que o toldar da visão de escape eloquente com uma razão pragmática jamais seria solução para um beco sem saída. Kruder afastou-se de Viena e preferiu parcerias em Munique, Stereotyp encontrou em 2004 nos Al-Haca o estímulo para produzir – e agora na soul a vontade de viver –, o Dub Club diminuiu o seu domínio sobre o dub. Raras foram as excepções que, de aos quatro anos para cá, evidenciaram substância e produziram música com matéria de estudo suficiente para captar as atenções dos melhores – e mais atentos – alunos.
Michael Langoth editou em 2003 o seu primeiro álbum. «Sentimental Cooking» foi um dos discos saídos dos laboratórios vienenses que passou despercebido a muitos e que se encaixava na definição alternativa dos downtempo tipicamente Kruder & Dormeister que caracterizavam na altura a cidade banhada pelo Danúbio. Apesar de revelar algum encanto pelos ritmos desacelerados, os embalos jazzisticos e pelos efeitos narcóticos dos dub (em pequena escala), Langoth sonhava com a soul, descomprometida e em busca de novos prazeres. Acrescentando alguns delírios electrónicos eloquentes redefinia à sua maneira a sua própria paisagem. Nem em todos momentos o conseguiu de forma evidente, mas a vontade estava lá. Volvidos três anos edita o seu segundo álbum e, apesar de não se afastar significativamente dos pressupostos iniciais, volta-nos a conquistar a atenção, obrigando-nos, no fim de umas quantas escutas, a um elogio, não muito grande, mas um elogio expressivo. Um indicativo de um resultado satisfatório que revela a mesma alma e vontade em escrever com sentido.
«Grounding» demonstra essencialmente uma música produzida para agradar exclusivamente ao seu autor, ignorando o resultado do impacto num mundo exterior. Não será obrigatório agradar a massas. Antes pelo contrário. O segredo continua a estar na forma como a verdade interior é catapultada para a música e nela integrada o que de melhor sentimos da vida. Por aqui encontramos o gosto pela descoberta de novas ideias, apesar de inovação nem sempre ser um carácter em manifestação. Langoth alarga definitivamente o espectro da sua música á pop e, sentindo-se simultaneamente atraído pela soul com traços mais europeus, renova-se com a espontaneidade necessária. Não atinge todos os patamares com a uniformização exigida, mas o importante será constatar a coerência mínima com que nos confronta num período onde este tipo de sonoridade, num evidente namoro com linguagens jazz, hip-hop, soul e pop, pouco tem revelado senão a preguiça sabática de quem sentou-se no sofá e dele ainda não quis sair.
KARMA
LATENIGHT DAYDREAMINGA mudança faz parte do processo da vida. Em vários momentos, todos nós já sentimos a necessidade de alterar o percurso de forma a evitar a rotina maçadora. A música, ao longo da historia, provou por várias vezes que ou se muda e evolui-se ou então acaba-se condenado por um sistema que corrói tudo o que é novidade e adapta-se a tudo o que seja pragmatismo cego e corrupto. E mesmo quando a novidade não parece trazer nada de verdadeiramente significante para a humanidade, a simples tentativa de correr algum risco pode ser meritório. Todas as transformações, mutações e metamorfoses na música devem sempre ser alvo de alguma reflexão. Por várias vezes elas foram benéficas na revitalização de determinados projectos, noutras foram o passo decisivo para o abismo da vulgaridade e para o fim de um sonho nascido em dias de sol.
Depois de um período de recolhimento e, perante significativas transformações no seio familiar, os alemães Karma decidiram regressar á produção de música depois de cinco anos de um inesperado silêncio. E o reflexo das mudanças nas suas vidas está bem patente na música que agora trouxeram ao mundo. Primeiro poderá ficar o espanto e depois algum amargo de boca. Latenight Daydreaming é tudo o que não esperávamos de Lars Dorsch e Tom Dams, um álbum light, pop e com poucas sensações. É certo que os Karma sempre demonstraram algum fascínio pelos mecanismos da pop. Thrill Seekers de 2000, apesar do sampler ser ferramenta para a costura de várias memórias jazz, reflectia alguma luminosidade pop enquanto as restantes tipologias acrescentavam envergadura estética á obra. Mas nunca, mesmo nesses momentos de aproximação, davam a entender que o seu futuro passaria por uma investida tão clara pelo formato de canção que agora encontramos em Latenight Daydreaming. A transformação podia exigir-se mas com uma noção de que o reportório anterior teria uma imagem, um som e um carácter. Ou seja, mudar mas manter a identidade que tantos momentos de felicidade proporcionaram no passado. E nesta situação será caso para dizer que a evolução foi precipitada, desmesurada e o fim de um projecto que tinha como motivação desbravar o jazz perante uma óptica modernista. Agora, para que não haja dúvidas, é vez da pop dominar.
Os Karma sempre demonstraram grandes sensibilidades na produção e, apesar do sampler ter sido guardado sem margem para um regresso nos próximos tempos, a dupla demonstra que além das capacidades de organizadores de sons, também são compositores de canções fantasiosas. Em vez da colecção jazz em vinil para base de inspiração, o virtuosismo da canção clássica de 60 e 70 aliada á folk e a alguma neo-soul, transforma os Karma em viajantes sentimentalistas. Os Zero 7, os Air, Braian Wilson ou Terry Callier parecem ser algumas das actuais referências estéticas e, esperando-se mais de quem sabe, que essas referências não fossem tão obvias. Alem da descaracterização de um projecto, fundamental na implementação de novas ideias em torno do jazz, estamos também perante um regresso que nada trás de relevante ao cenário actual da pop. As canções são bonitas, talvez excessivamente polidas, mas raros são os momentos onde existe aceleração cardíaca ou emoções exasperadas. Os momentos são bem orquestrados, mas no fim acaba por haver uma sensação de inconsequência e de desilusão. Mudanças sim, mas assim tantas também não.
RADIO CITIZEN BERLIN SERENGETI
O nome do projecto e do álbum começam por sugerir o que motivou o seu autor. Uma certa ideia de globalidade que torna um homem num cidadão do mundo através das ondas do ainda principal motor de divulgação musical. E ainda a uma ideia de que a música será sempre um universo sem fronteiras, onde uma cidade europeia – para onde convergem diversas ideias e tipologias com proveniência bem evidente – pode ser palco para um espectáculo onde tradição colide com modernidade. Berlim será uma dessas cidades e Niko Schabel um dos cidadãos dispostos a incluir na sua música tudo o que de bom veio ao mundo.
Não será obrigatoriamente uma necessidade empírica incluir tudo no mesmo caldeirão, mas é indiscutivelmente uma sensação única quando isso acontece. Mais, quando alguém com desdém, sabedoria e poder síntese o consegue sem inventar nada de verdadeiramente novo mas, num mesmo golpe, exibir-se como produtor tecnicamente inventivo e músico entendido no ofício, aí estamos perante talento puro e possivelmente perante uma obra memorável. Talvez a determinação seja mesmo o que acaba por se destacar nesta viagem sofisticadamente tecnológica pela tradição africana chamado Berlin Serengeti.
Temos de tudo e, quase numa jogada de mestre, tudo faz sentido. Mulatu e Coltrane co-habitam no mesmo estúdio. O funk, dub, Afrobeat, Etno-jazz, post-bop, modal jazz, rock, soul, Brasil, hip-hop e bandas sonoras de filme noir são algumas das tipologias que inspiram o alemão a produzir. Poder conceptual para erguer um facto estético. Será caso para elogiar a capacidade de empreendimento e a força aplicada na forma de tratamento de toda a matéria-prima. O tempo investido nos pormenores é evidente, apesar da sonoridade propositadamente suja e rude sugerir o contrário.
O nu-jazz já contou com melhores dias. Mas é evidente que quando o regresso ás raízes devolve a clarividência perdida, o poeta volta a compor rimas com a fluência de outros tempos. Chama-se também de inspiração. E não será outra a palavra que melhor descreve Berlin Serengeti. Bajka é extraordinária, e como se fosse necessário mais, devolve com dedicação o esforço de Niko Schabel, que em permanente convulsão consegue construir um admirável conjunto de temas impecavelmente conscientes dos tempos que vivemos. Um raro momento de iluminação criativa e um dos raros casos onde, uma vez mais, o passado se envolve com o futuro numa promiscuidade invejável.
PLAN BWHO NEEDS ACTIONS WHEN YOU GOT WORDS
O amor, o sexo, a família, descriminações raciais e a violência urbana são tópicos habituais no hip-hop. Foi um dos propósitos por detrás da sua génese: proporcionar à gente da rua o direito a expressar-se, dando voz à sua indignação. Todos opinaram, falaram, cantaram ou bradam aos céus as mensagens que achavam pertinentes. E ainda hoje em dia o se faz, para que não haja dúvidas. O que resta saber ao certo é o motivo porque o fazem: será por uma questão de facilidade de comunicação com um público-alvo receptivo a determinadas mensagens ou será porque em todo discurso proverbial existe um conteúdo existencial com figuras e situações reais que perturbam a alma de todos? Será uma questão de fazer rap para o prestígio em vez do diálogo interior perante realidades cruéis? Tudo volta a ser uma questão de postura. Todos pretendem reflectir o estado das ruas desprezadas pela política ou as atitudes violentas ignoradas pela sociedade. É honroso faze-lo enquanto a verdade for uma necessidade do íntimo em vez do mero aproveitamento circunstancial.
No álbum de estreia, Plan B, de guitarra na mão, pregoa ao longo de uma hora, fala de tudo e de forma impressionante acaba por não falar de nada. No entanto fá-lo com a convicção de quem está a transmitir ao mundo – que o quer ouvir – uma mensagem pertinente. E será mesmo a convicção que o salva do desastre completo? Na veemência do palavreado expressa-se com força capaz de fazer parar o trânsito, no entanto existirá algumas dúvidas quanto ao conteúdo. Who Needs Actions When You Got Words revela de boa vontade que a atitude de pregador fica-lhe mal. A preconização excessiva retira-lhe alguma sensibilidade e em vez da mobilização do público com um conteúdo sensivo, impressiona apenas com a forma rude como tenta ser exageradamente incisivo.
A estrutura rítmica, em evidente textura hip-hop, revela-se competente ao ponto de suportar uma guitarra em acordes repetitivos e desinteressantes. Ben Drew – a cara por detrás de Plan B – revela-se assim um músico com poucos recursos técnicos na manipulação do instrumento. O dedilhar das cordas ficaria bem enquanto servisse como mais um elemento gerador de melodia e não um suporte evidente para toda a operação. Na escrita de rimas pode revelar algum talento mediano, o mesmo não se podendo dizer do resto. Alem disso sobressai uma evidente contradição em Who Needs Actions When You Got Words, premeditada pelos vistos, ao tentar atribuir calor humano ao grime. Uma perversão de algo que por natureza nasceu frio e agreste e que seria perfeitamente adequado a suportar aquilo que Plan B desejaria para este disco: rudeza no ditado sobre texturas ásperas. Aí há que admitir: foi um tiro a sangue frio no próprio pé.
Há quem o tenha comparado como uma mistura entre Mike Skinner e Eminen, no entanto nem tem a atitude confiante de um nem a segurança na escrita de outro. Pode ter se inspirado com ambos, mas certo é que ainda não captou a essência necessária a tornar se num músico ou produtor proficiente com a determinação suficiente para sair do seu pequeno bairro de subúrbio e revelar-se como mensageiro de alguma boa-nova. Por enquanto fica-se por um mero pregador de pedras na mão com um recado frágil e delgado.